quinta-feira, 20 de maio de 2010

A espera

Pegou o bauzinho de lembranças, sentou-se em sua cama e preparou-se para o dolorido ritual em meio a tantas fotos e recordações. Revirou aqueles papéis amarelados. Ainda guardam as mesmas letras, o mesmo valor, ela ainda pode se lembrar do cheiro daquelas cartas. Hoje elas cheiram a saudade. Mas ainda são capazes de fazer rolar lágrimas dos seus olhos. Lágrimas pesadas, expressivas, confidentes e aliviadoras de uma dor tão forte, ainda intensa, viva, contida somente dentro dela, pertencente somente a ela.

Estava bonita como uma donzela. Seus cabelos aparentavam uma maciez e delicadeza sem tamanho, amparados por duas pequenas pérolas a enfeitar suas orelhas, refletindo a pele clara, reluzente, ainda firme e ao mesmo tempo tão delicada. Sua boca cor de cereja, perfeitamente delineada, expressava a angústia e a inquietação através de uma pequena mordida no lábio inferior. Suas bochechas enrubescidas, em outrora como que a lhe dar um ar de saúde, hoje representavam a espera, a tentativa de se fazer bela para o amado aguardado, a saudade daqueles tempos em que ela tinha a ele e nada mais importava.

No entanto, apesar de toda beleza, nada se comparava a seus olhos. De um ocre suave, translúcido, ao mesmo tempo dourado e misterioso, eles refletiam a delicadeza e o amadurecimento de uma menina-mulher. Eram olhos tristes. Se você reparar bem, verá que estão sempre avermelhados, castigados pelo choro diário.

Tem chorado porque sabe que nunca mais aquele som da caixinha de correio a se fechar terá o mesmo sentido. Ele não está mais aqui. Ela não tem mais vinte anos. Trinta anos se passaram e a guerra não o deixou voltar para casa. Há trinta anos ela o espera. Há trinta anos ela chora. Há trinta anos ela não recebe mais uma carta a dizer-lhe que ele tem saudades, que em breve voltará, a guerra está a acabar e eles poderão viver felizes novamente.

Suas mãos, cansadas pelo tempo, remexem as cartas recebidas com tanta intensidade, tamanha paixão e desejo de ver aquela situação ter seu fim. Ela ainda consegue sentir seu cheiro, ver seu sorriso, descobrir a entonação e o sentimento carregado nas palavras de cada uma daquelas cartas.

Recorda-se que era sempre o momento mais aguardado: o som da caixinha de correio a se fechar, o aumento da palpitação de seu coração gritando a dúvida, a incerteza, a esperança de boas novas, de amor, de fim daquela agonia, de vida. A realeza do conteúdo da caixinha era algo inestimável, a pouca e tão ansiada segurança, ao menos mais um dia de felicidade. A guerra trouxe consigo a tristeza e a espera constante, as orações, a angústia, a separação.

Ainda hoje ela aguarda, tendo a esperança como única companheira, a volta do amado. No fundo, sabe a verdade. Mas seu coração ainda acredita e é assim que ela o mantém vivo: nas suas memórias, no seu coração, no seu amor e nas suas cartas.

- “Ah, que saudades das suas cartas!”

Suspirou. E então fechou o bauzinho.

sábado, 30 de janeiro de 2010

meu verão mais obscuro

Acho que é inexpressável o que aconteceu, o modo como me senti, o modo como isso lateja dentro de mim. Já se passaram alguns dias e a dor só piora. Eu fico a esperar um milagre, uma mudança...
De qualquer forma, não sai da minha cabeça. Me sinto dentro de uma novela.
Ao sair da piscina, resolvi pegar um sol. Sentei na beiradinha, balançando os pés na água e observando as pessoas. Havia um casal de namorados do meu lado, felizes, sorrindo.
Achei melhor tomar meu banho, ir embora, do que ficar vendo aquela cena.
Sentei sozinha na mesa, esperando. Fiquei a olhar para a porta do banheiro masculino. Enquanto isso a minha mente vagava por tantos momentos, momentos passados, alguns ainda recentes e momentos que eu queria viver. Na mesa ao meu lado, o casal novamente. Agora eles se beijavam. Confesso que os invejei. Olhei pras minhas mãos, vazias, sem nenhuma marca, sem nenhuma outra mão a se fundir. O meu celular não tocava. Nenhuma risada, elogio ou piadinha ecoava pro meu lado. E já eram mais de seis da tarde de um sábado. Eis que sai uma figura do banheiro. De pele branca, mais ou menos alto, cabelos escuros e arrepiados, olhos castanhos marcantes, aquele sorriso torto... eu quase me levantei. Resolvi olhar novamente. Foi aí que me dei conta de que não era possível que fosse quem eu esperava que fosse. Fechei os olhos, decepcionada e frustrada comigo mesma, por desejar isso tão forte a ponto de materializar um desejo. Segurei com maior intensidade a bolsa em meu colo, como se assim eu tivesse um lugar em que me apoiar. Como se pudesse passar para aquele grande saco de pano toda a minha dor e angústia.
Confesso que não adiantou nada, que o melhor momento do dia foi quando fechei os olhos dentro da sauna e me senti longe de tudo, em um lugar desconhecido, onde ninguém viesse me perturbar com a minha dor. Imaginei que talvez aquela sauna poderia ser uma câmara de gás e eu estaria morta em segundos, como aconteceu com tantos judeus. Ao menos não ia mais sofrer.
Mas abri os olhos e estava viva.
Viva para viver tanta coisa que me parece impossível no momento. Ah, como eu preferia aquela monotonia dos finais de semana, aquele corriqueirismo que, apesar de tão presente, era tranquilo. Sei que não parecia, mas eu era feliz.
Eu queria ser feliz eternamente daquele jeito, consertando aqui e ali, mudando aqui e ali, mas queria estar naquele caminho, e que ele fosse o caminho certo da felicidade.
Tantos sorrisos, tantas palavras e tantos momentos sem tradução. Eles gritam na minha memória e no meu coração. Gritam por socorro, por resgate. Gritam para que eu não os deixe morrer, que os renove. Que traga mais deles. E que não deixe de trazer nunca.
Eles insistem em gritar... que querem que esse ponto não seja um ponto e sim uma vírgula.
Mas não depende só de mim, eu já disse isso pra eles...
Alguns minutos depois vi a figura do meu pai a sair do banheiro. Vesti meu melhor sorriso e minha simpatia. Mergulhei a caminho de mais uma noite só, fria e cinzenta como as de Liesel, apesar do alto verão.
Frias e cinzentas como as nuvens que obscuram o meu coração.

domingo, 24 de janeiro de 2010

"Te desejo uma fé enorme, em qualquer coisa, não importa o quê, como aquela fé que a gente teve um dia, me deseja também uma coisa bem bonita, uma coisa qualquer maravilhosa, que me faça acreditar em tudo de novo, que nos faça acreditar em tudo outra vez."

Caio Fernando Abreu